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Sem medo de ser feliz Por Luiz Inácio Lula da Silva

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República.

Sem medo de ser feliz   Por Luiz Inácio Lula da Silva
Sem medo de ser feliz Por Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: Reprodução)

Na sua simplicidade, este gesto encarnou os sentimentos de esperança e fraternidade de toda uma geração, convertendo-se em potente símbolo de um movimento que extrapolou aquela disputa eleitoral.

Descobrimos o poder da linguagem não verbal como veículo de sensibilização, conscientização e mobilização.

O “L” performado pelos militantes e apoiadores em todo o país se converteu em um clamor de

liberdade e luta. Peregrinar por este imenso país abençoado por Deus e encontrar a sua gente valorosa: não há outra forma de conhecer a verdadeira alma do Brasil. A isso eu tenho me dedicado incansavelmente há mais de quarenta anos e ainda sou um aprendiz. A extraordinária riqueza cultural e o calor humano que sempre encontrei e recebi nas minhas andanças me mantiveram de pé nas horas mais amargas e sofridas.

A fé, a coragem e a resiliência dos brasileiros e brasileiras mais simples e humildes alimentam a minha inquebrantável esperança de que juntos podemos vencer todas as adversidades e construir uma grande nação, que garanta a todos e a cada um o direito a uma vida digna. Juntos, podemos transformar o Brasil num dos faróis da Humanidade no século XXI. Este projeto foi interrompido, mas segue muito vivo no coração do nosso povo.

Ninguém disse que seria fácil desmantelar estruturas seculares de exclusão, dominação e exploração. A caminhada tem sido árdua e cheia de percalços. Mas já acumulamos muitas vitórias e aprendemos que somente com mobilização e luta se avança. Este país começou a mudar quando os sem escola, sem-terra, sem-teto, sem voz e sem vez tomaram consciência dos seus direitos, passaram a acreditar que podiam ser os protagonistas e foram à luta, com destemor e audácia.

Este livro, escrito com paixão pelo jornalista Mário Milani, meu amigo e companheiro de longa data, tem como pano de fundo um dos capítulos mais heroicos do longo caminho de construção de uma alternativa democrática e popular de governo: a campanha de 1989, quando reconquistamos o direito sagrado de votar para presidente, usurpado por quase três décadas pela ditadura militar.

Aquela campanha memorável foi a mais militante, a mais popular, a mais criativa e a mais vibrante de todas as eleições presidenciais desde a redemocratização. O entusiasmo arrebatador da “rede povo” me levou ao 2º turno e a um passo da Presidência. Milani, junto com tantos outros companheiros — e me recordo aqui com emoção do grande Carlito Maia — foram decisivos naquele momento histórico.

O PT era ainda um partido em formação, sem recursos financeiros para enfrentar adversários poderosos, apoiados pelo poder econômico. Porém, contávamos com um ativo que dinheiro nenhum consegue comprar: uma militância alegre, irreverente e aguerrida. Os materiais de campanha eram produzidos artesanalmente e o trabalho boca a boca era feito por voluntários e voluntárias, em clima de um mutirão pela democracia.

Como coordenador de marketing do PT paranaense, Milani teve uma sacada genial, que teria enorme impacto naquela campanha: ele criou a expressão gestual do “L” formado pelo dedo polegar e o indicador. A irradiação foi instantânea e contagiou o país de norte a sul, injetando uma energia que empolgou nossa militância e ampliou exponencialmente o leque de apoiadores e simpatizantes.

Na sua simplicidade, este gesto encarnou os sentimentos de esperança e fraternidade de toda uma geração, convertendo-se em potente símbolo de um movimento que extrapolou aquela disputa eleitoral. Descobrimos o poder da linguagem não verbal como veículo de sensibilização, conscientização e mobilização. O “L” performado pelos militantes e apoiadores em todo o país se converteu em um clamor de liberdade e luta.

Mais de três décadas depois, recordo com grande emoção aquelas jornadas épicas da campanha de 1989. Era uma coisa linda que se repetia em qualquer lugar do Brasil que visitávamos: pessoas de todas as idades e trajetórias nos recebiam calorosamente com o famoso gesto do “L”. Para mim, era especialmente comovente a cena comum de pessoas que — impossibilitadas de se aproximar fisicamente — acenavam de longe, com a eloquência e assertividade gestual.

Foram tantas as vezes que esta interação, que dispensava palavras, repetiu-se por este Brasil afora com ribeirinhos, índios, trabalhadores rurais e urbanos; com os sem-teto, catadores de materiais recicláveis, estudantes, crianças, jovens, pessoas de maior idade e mulheres e homens de boa vontade de todas as idades.

Nos grandes comícios, que logravam reunir dezenas de milhares de pessoas e até centenas de milhares, o momento apoteótico ficava reservado para o final, quando a multidão cantava à capela o jingle da campanha levantando os braços e fazendo o “L”. O fervor cívico era contagiante e ninguém ficava indiferente. Eu saía com a alma lavada desses eventos épicos.

Nunca falei para o Mário Milani o que vou contar agora. Mas numa visita que fiz ao Mandela na África do Sul, pouco depois dele ter saído da prisão, ele me levou a uma gigantesca manifestação contra o apartheid. Quando entramos naquele estádio, Mandela foi ovacionado pela multidão aos gritos de “Madiba”, como ele era carinhosamente chamado.

Depois da recepção eufórica, o público ficou em silêncio para ouvir o mítico líder da resistência ao regime de segregação racial. Quando Mandela concluiu seu discurso de estadista, a multidão irrompeu em triunfo bradando slogans antiapartheid, com os braços estendidos e o punho cerrado, gesto celebrizado pelos Panteras Negras. Então, me veio à mente um filme da campanha de 1989, no qual se sucediam imagens de manifestações que reuniam um mar de gente fazendo em uníssono o “L”, ecoando o jingle “sem medo de ser feliz”.

Ao lado de Mandela vivi um daqueles momentos inesquecíveis, quando a história está sendo escrita perante nossos olhos.

Quero concluir ressaltando mais uma vez que a maior riqueza do PT é a sua combativa militância. O Milani é um militante raiz, que sempre esteve presente em todos os combates. Onde tinha uma situação de exploração e injustiça, o Mário estava lá para denunciar e protestar. Esteve na linha de frente da organização do partido no Paraná. Nunca se contentou em assistir as disputas eleitorais da arquibancada, preferindo tomar parte — ora como candidato, ora como militante de base.

A publicação de A voz do gesto não poderia vir em melhor hora, neste momento em que nos preparamos para enfrentar uma disputa crucial para o futuro da democracia no Brasil. Que as lições aprendidas nos inspirem a dar o melhor para construirmos juntos a vitória das forças populares e democráticas em 2022. Sem medo de ser feliz.

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República.

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