Olhar para o passado à frente: uma lição chinesa no gesto de Lula em Moscou
Rede News

No Ocidente, aprendemos a imaginar o tempo como uma linha reta que se estende à nossa frente: o futuro está adiante, e o passado, atrás. Essa visão, tão natural para nós, contrasta com a metáfora cultivada pela tradição chinesa, em que o passado está “à frente”, visível como uma paisagem já percorrida, e o futuro, “atrás”, oculto aos olhos, como algo ainda por se revelar. Essa inversão convida a uma reflexão profunda: o que está diante de nós é o que já conhecemos — e é justamente esse conhecimento que nos orienta nos passos seguintes.
Na língua chinesa, essa concepção aparece de forma clara: o termo yǐqián (以前), usado para se referir ao passado, significa literalmente “à frente”; enquanto yǐhòu (以后), o futuro, é “atrás”. A linguagem não apenas expressa o tempo de modo diferente — ela organiza uma outra forma de pensar a história. O passado é concreto, visível, digno de atenção; o futuro, incerto e invisível, exige cautela. Essa maneira de ver o mundo não é apenas uma curiosidade linguística: é uma filosofia que valoriza a memória como ferramenta de orientação.
Tomo a liberdade de emprestar esta metáfora chinesa para dizer que a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Rússia para celebrar os 80 anos da vitória soviética sobre o nazismo resgata exatamente essa necessidade de manter viva a memória histórica. Em 9 de maio de 1945, o Exército Vermelho derrotou a Alemanha nazista, pondo fim ao mais sangrento conflito da história moderna. A data, conhecida como Dia da Vitória, não é apenas uma celebração russa, mas um marco para toda a humanidade.
Lula, ao participar das cerimônias na Praça Vermelha, reafirma um princípio fundamental: o passado não deve ser esquecido, pois é ele que nos orienta no presente. A luta contra o fascismo, o horror da guerra e a importância da resistência coletiva são lições que, se negligenciadas, podem permitir a repetição de tragédias. A metáfora chinesa nos lembra que, embora o futuro seja imprevisível, o passado está sempre à nossa frente, como um farol.
A Segunda Guerra Mundial, que matou dezenas de milhões de pessoas e revelou os horrores do nazismo, não pode ser esquecida ou relativizada. Negar ou minimizar os crimes daquele tempo, como ainda tentam fazer certas correntes revisionistas, é apagar justamente aquilo que está à frente dos nossos olhos, como a tradição chinesa sugere. Por isso, a lembrança do sacrifício soviético — e dos milhões de vidas perdidas em nome da liberdade — deve ser não apenas preservada, mas constantemente atualizada como referência ética e política.
Lula, ao caminhar por entre os símbolos da vitória antifascista, carrega consigo não apenas a diplomacia de um país que busca equilíbrio entre potências. Carrega também a responsabilidade de um líder que compreende que o futuro — esse território incerto que se esconde às nossas costas — só pode ser encarado com firmeza se mantivermos os olhos abertos para o que já se revelou. O Brasil, ao alinhar-se com as potências do Sul Global e promover acordos com Rússia e China, parece querer redesenhar sua trajetória sem abrir mão das memórias que ajudam a moldar seu lugar no mundo.
Na metáfora chinesa do tempo, ignorar o passado é como caminhar de costas sem saber de onde veio. É condenar-se a tropeçar no desconhecido por não enxergar os sinais que o percurso já nos ofereceu. Ao fazer do passado uma referência diante dos olhos, podemos avançar com mais consciência e menos arrogância. E, talvez, seja esse o recado mais sutil — mas profundo — da presença de Lula em Moscou. Porque ver o passado com nitidez é, muitas vezes, o único modo de não se perder no caminho do futuro.
Comentários (0)